agosto 23, 2013



Ajusto a bicicleta a mim, sabendo que hoje ela não me pertence.
Apagam-se as luzes e ecoam as primeiras palavras de ânimo para quem tem 1 hora para deitar fora suor e raiva e uma dor por dentro que precisa de resposta.
Baixo a cabeça e olho para os pés e peço baixinho que eles voem até não aguentar mais, mas hoje eu não comando nada.
Hoje não controlo os pensamentos.
Prendo um dos ténis num pedal e rebento os atacadores numa explosão de barulho.
Não sinto dor.
Mas é o atacador preso que me trava à força, como se a vontade fosse de explodir toda.
Tenho de desistir hoje. Foi a primeira vez.
Liberto o atacador e olho um pedaço de calçado rasgado.
Ficam sempre vestígios de uma dor que não sinto fisicamente.
Penso que nunca será nos momentos de raiva que me vou superar e chegar mais longe.
É preciso estar em paz para me ultrapassar e ouvir a razão de ser das coisas.


Podia virar o meu mundo todo ao contrário e começar de um ponto zero e iludir-me que isso apagaria todos os meus propósitos até aqui.
Se soubesse que ao mudar de país, de língua, tudo se apagaria para trás, eu fugia num avião.
Podia tomar drogas que me iludissem a memória e talvez a origem da minha vontade se apagasse também.
Podia tentar nascer de novo, noutra morada e inventava novas raízes e valores e virava-me do avesso.
Mudaria de nome e cortava o cabelo se isso me mudasse por dentro.
Eu podia tentar fazer tudo para ser outra pessoa, se eu soubesse que isso mudaria o rumo...
Se eu pudesse recuar no meu passado e mudar a origem da minha própria espécie, talvez eu pudesse ser quem não sou.
Mas dizem-me que se sair do país levo comigo as memórias de cá.
E dizem-me que se fugir ao meu próprio pensamento, ele trai-me e assombra-me de novo nem que seja num sonho.
Dizem-me que não adianta se a tinta do cabelo for mais escura, que ela não disfarça a clareza do olhar.
E eu faço equações do que posso apagar ou esquecer... ou negar tudo o que sou se em troca alguma coisa mudar.
Mas parece que nada adianta...
Na minha origem nasci com um carimbo de personalidade própria e vontade e projetos que hoje não me acompanham e não sei se parto de mim mesma ou se esqueço tudo o que quis até hoje.
Talvez se eu arrancasse esta pele, nascesse outra?
Talvez se me perdesse e deixasse cá a memória e o coração, talvez alguém me encontrasse diferente?
Vou ou fico?
Faço ou não faço nada ou tudo?
Eu podia mudar o mundo se soubesse que isso me mudaria a mim...

agosto 16, 2013



Gostava sempre de por as nossas duas fotos ao lado uma da outra. Ambas de perfil e a preto e branco. E dizia sempre: "não somos iguais?".
Nunca lhe perdoei a Barbie que me estragou, quando a atirou contra o sofá e a cabeça saltou como se sempre tivesse tido a vontade própria de sair daquele corpo cheio de mamas e cintura estreita.
Desafiava-me a paciência cada vez que me tentava domar à força, com palavras pesadas e moralistas. E eu retorquia de diversas formas, quando lhe atirei com uma maçã já mordida, ou quando corria à volta da mesa a desafiar que me apanhasse e travava até estar quase nas mãos dela.
Só lhe pedi uma vez que me levasse com ela à missa, queria fugir de uma miúda insuportável que brincava comigo lá em casa e não vi outra desculpa melhor. Na altura respondeu-me: "deves estar para aprontar alguma, tu não gostas de ir à missa".
Aprendi a cozinhar das tantas vezes que a observei e o sentido que ganhei pela casa e pela organização é dela. Uma cozinha nunca fica por arrumar e só nós é que o sabemos fazer na perfeição!
Gostava de comprar roupa, mas fingia que era só quando era mesmo necessário. Depois experimentava a roupa em casa e olhava-se ao espelho e perguntava: "achas que me fica bem?". E quer eu dissesse que sim ou não, era indiferente. Rematava sempre: "não me fica bem aqui... olha, vou trocar".
Fez sempre o que lhe apeteceu, mas disse sempre que era em nome dos outros. Mas não era verdade, era pela exclusiva vontade dela.
Não gosto de sopa por causa dela.
Não acredito na igreja porque me obrigou a acreditar em razões sem me saber dar os argumentos certos.
Sempre quis ser o oposto dela, mas o facto é que somos parecidas.
Ainda mantém alguns cabelos loiros, o resto inundou-se de branco.
Ficou apenas o olhar azul já sem ser tão reprovador.
Agora dispersa-se e troca as conversas e faz a mesma pergunta 100 vezes.
Se lhe contar tudo isto ela vai sorrir mesmo que não se lembre.
Mas lembra-se de mim, mesmo que tenha parado algures no tempo.
Mesmo que acorde no sofá à noite e pergunte: "a nossa Joaninha já chegou da escola?".
A avó Carmo tem alzheimer e está a ficar sem a vida que tantas vezes me irritou.
E eu ainda não percebi se aceito que este seja o nosso desfecho...

agosto 14, 2013


Os tempos mudaram por cá.
Acabaram-se os mergulhos rápidos na praia, quando o almoço permitia que o tempo fosse dono da vontade.
As pessoas tornaram-se mais sedentas de egos e de espertezas básicas como se tivessem regressado aos tempos da escola.
Não há festas nem bolos com velas para apagar, nem brindes onde acreditámos ser uma segunda família.
Come-se pior, mas paga-se menos. A qualidade passou a ser um capricho como se fosse um traço dos de direita.
Há menos amigos e menos gente feliz. Há menos gente. Menos almas a pôr alma nas coisas.
O Natal já não nos emociona se vier acompanhado de bolo rei. Já não há bolo rei.
Lisboa deixou de ser um porto de abrigo e um escape nas horas em que o sol cortava a direito a rua do Alecrim.
Aqueles que chegam já não têm vontade de aprender e acham que dominam o mundo como se tudo fosse um direito adquirido e sem obrigações. Acham-se iguais quando ainda não deram provas de o merecer.
Os tempos mudaram-nos.
Separaram-nos de amigos e criaram buracos de afetos e desconfiança.
O medo passou a fazer parte do nosso cartão de visita e o sonho de nos ultrapassarmos a nós próprios acabou.
Os tempos mudaram por cá.
Com menos empenho, crença, com a vontade roubada à força e o brio corroído pelos mais pobres de espírito, desencontrámo-nos do tempo em que eramos pioneiros de qualquer coisa, nem que fosse da ilusão.
Aquele tempo em que achámos que seríamos alguém e saboravamos os dias com o paladar que só a vida dá, só a vida tira.
Aquele tempo que felizmente também já acabou, mas que era mais rico do que este que nos obriga a viver sempre com tão pouco...
Tão pouco de espírito...



agosto 09, 2013

se parte de ti existe com o olhar que te vi, então apaixonei-me por ti!

da natureza das coisas

Há um código genético que me desenha como uma peça certa, sem desvios, ou mutações e me define em linhas e curvas previstas, sem interrupções, apesar de ser inconsequente.
Um código que dita desde os primeiros passos, o sentido do caminho, regido pelo curiosidade do que não se viveu ainda.
Há um código genético que me define como uma assinatura fixa que vinca o papel.
É um código que é meu e que não assimila muito as regras alheias.
Um código genético que me define as decisões e as vivências e que não consegue importar-se com a moral dos outros.
No meu código genético está a vontade que me rege a vida e que não abandono em prol de ninguém.
Imperfeita, mas fiel ao que busco, o meu código genético não me admite que seja de outra forma. 

agosto 08, 2013

"Olha, eu sei que o barco tá furado e sei que você também sabe, mas queria te dizer pra não parar de remar, porque te ver remando me dá vontade de não querer parar também.Tá me entendendo? Eu sei que sim. Eu entro nesse barco, é só me pedir. Nem precisa de jeito certo, só dizer e eu vou. Faz tempo que quero ingressar nessa viagem, mas pra isso preciso saber se você vai também. Porque sozinha, não vou. Não tem como remar sozinha, eu ficaria girando em torno de mim mesma. Mas olha, eu só entro nesse barco se você prometer remar também! Eu abandono tudo, história, passado, cicatrizes. Mudo o visual, deixo o cabelo crescer, começo a come...r direito, vou todo dia pra academia. Mas você tem que prometer que vai remar também, com vontade! Eu começo a ler sobre política, futebol, ficção científica. Aprendo a pescar, se precisar. Mas você tem que remar também. Eu desisto fácil, você sabe. E talvez essa viagem não dure mais do que alguns minutos, mas eu entro nesse barco, é só me pedir. Perco o medo de dirigir só pra atravessar o mundo pra te ver todo dia. Mas você tem que me prometer que vai remar junto comigo. Mesmo se esse barco estiver furado eu vou, basta me pedir. Mas a gente tem que afundar junto e descobrir que é possível nadar junto. Eu te ensino a nadar, juro! Mas você tem que me prometer que vai tentar, que vai se esforçar, que vai remar enquanto for preciso, enquanto tiver forças! Você tem que me prometer que essa viagem não vai ser a toa, que vale a pena. Que por você vale a pena. Que por nós vale a pena. Remar. Re-amar. Amar". Caio Fernando de Abreu

agosto 07, 2013



Quanto mais viajamos, mais percebemos que o lugar de onde viemos é pouco para o tanto que cabe em nós. E assim é o coração...também.

agosto 02, 2013

Há um combóio que me atravessa sempre o olhar, mas segue mais veloz do que aquilo que consigo alcançar. Há um combóio sem paragem para quem perdeu a primeira viagem. Um combóio que me leva o tempo à frente, como um castigo instalado de quem não podia falhar.